Caetano Veloso é o maior artista da história do Brasil. É uma opinião entre tantas outras, claro, mas basta mergulhar na discografia dele pra perceber que o homem é um ponto fora da curva. Sempre atento à conjuntura do país, Caetano aparece, reaparece, opina, desconcerta, muda a história, e faz isso cantando. O curioso é que, com toda essa grandeza, tem pouca coisa na internet tentando organizar a obra dele com algum critério. E olha que não é fácil: são 23 álbuns de estúdio (sem contar os ao vivo, os discos em parceria e os dedicados só a regravações), e o mais impressionante é como a régua se mantém alta o tempo todo. Sério: até o meu último lugar na lista é um disco de que gosto bastante. Então vamos lá.
#23 Meu coco (2021) – Repitam comigo: não existe álbum ruim do Caetano. Dito isso, o primeiro álbum de inéditas em mais de uma década veio cercado de expectativa, mas ficou aquém do que a trilogia Cê sugeria como caminho. Tem momentos de cuspição de fogo — como a vibrante “Anjos Tronchos” —, mas o disco muitas vezes opta por um comentário brando, quase protocolar sobre o Brasil, as redes, os afetos familiares. Ao fazer acenos pro feminejo ou o funk contemporâneo, Caetano parece mais querer lacrar do que deixar um statement, mais interessado em observar do que em tensionar. No calor do bolsonarismo, essa postura soava serena demais pro momento.
As que valem a pena: “Meu coco”, “Anjos tronchos”, “Não vou deixar”, “Pardo”.
#22 Araçá azul (1973) – Livre e hermético. Recém-chegado do exílio, Caetano mergulha num delírio experimental que virou o maior recorde de devoluções da história da MPB — não sem razão. É um disco de vocalizações abstratas, repetições obsessivas e longos momentos de fritação sonora. Dá pra entender o valor artístico: um rito de passagem entre canção tradicional e vanguarda concreta, algo que o Caetano talvez precisasse simplesmente tirar do corpo. O valor de replay é baixo. Ainda assim, há pontos de luz: o bolero “Tú me acostumbraste”, o proto-rock “Eu Quero Essa Mulher” e, principalmente, a faixa-título, curtinha, perfeita.
Um minuto e vinte de puro êxtase: “Araçá azul”.
#21 Noites do norte (2000) – Ouvi esse pela primeira vez pra montar essa lista e logo percebi que tinha me metido numa roubada. Rankear a discografia do Caetano? Que critério pode dar conta disso? Dá até vergonha de colocar Noites do norte tão abaixo, mas é o tipo de álbum que parece menor só por não conter grandes momentos. O tema da escravidão e seus desdobramentos é tratado com elegância e complexidade. A produção, dividida entre Caetano e Jaques Morelenbaum, aposta numa sonoridade limpa, com percussão sutil, cordas e o violão como centro. O destaque, pra mim, fica com o cover de “Zumbi”, do Jorge Ben, e com “Sou Seu Sabiá”, que depois ganharia versão da Marisa Monte.
Notáveis: “Zera a reza”, “Zumbi”, “Sou Seu Sabiá”.
#20 Zii e Zie (2009) – Foi nessa era que o Caetano estacionou o carro no Leblon, e Zii e Zie tem mesmo esse tom de crônica carioca, entre mar, política e noite. É o menos expressivo da trilogia com a banda Cê — talvez por ser também o menos pessoal. Aqui Caetano comenta o Brasil de Lula e FH com guitarras sujas, arranjos matemáticos, um certo distanciamento ensaístico. É o disco mais dissonante da trilogia, o com um conceito menos claro, com o som mais arejado.
As imperdíveis: “Perdeu”, “Lobão tem razão”, “Lapa”.
#19 Livro (1997) – Seis anos depois da aclamação de Circuladô, Caetano lança o brilhante Verdade tropical e, em paralelo, um disco que parece nascer da mesma pulsação: revisitar a própria obra olhando pra frente, lançando mundos no mundo. Livro tem também a produção cristalina de Jaques Morelenbaum, percussões baianas (afoxés, timbaus, djembês) e um claro desejo de dialogar com o mercado internacional. Não é um disco de grandes hits nem tão coeso quanto o antecessor Circuladô, mas é um passeio rico, afetivo e cheio de camadas pelo universo caetânico.
Os hits: “Livros”, “Não enche”.
#18 Qualquer coisa (1975) – Uma joia. O disco abre com um clássico absoluto, “Qualquer coisa”, um violãozinho que cresce até explodir em trompetes, flautas, baixo, bateria. Em seguida, três faixas em voz e violão, delicadas, perfeitas pra uma tarde de sol no inverno. Aos poucos, os arranjos vão se adensando — percussão discreta, pianinho — até tudo explodir de novo em “Jorge da Capadócia”, cover brilhante de Jorge Ben. O legal de observar a devoção do Caetano pelo Jorge Ben é que ele consegue fazer as músicas parecerem próprias. É o contrário do que acontece com os três covers de Beatles que vêm na sequência. Longos, sem energia. Sempre começo esse disco eufórico e termino frustrado. Infelizmente o ponto fraco é esse final.
Sol e frio: “Qualquer coisa,” “Samba e amor”, “Madrugada e amor”, “A tua presença morena”, “Jorge da Capadócia”.
#17 Joia (1975) – Qualquer coisa de desconfortável nessa música de abertura? “Quem vê assim pensa/Que você é muito minha filha/Mas na verdade/Você é bem mais minha mãe”? Sim, gente, o ídolo maior da música brasileira tinha 40 anos e teve relações sexuais com uma menina de treze. A gente só ficou sabendo depois, mas e aí? Pouca gente quer mexer nesse vespeiro. (Quer dizer, bom, a extrema direita quer, mas mais pra desconstruir a imagem do ídolo da esquerda do que por se importar de fato com a pedofilia, é claro. Acho que podemos fazer a reflexão sem eles.) O crime prescreveu? Digo crime mais moralmente, pra nós, porque aparentemente o entendimento da lei era diferente na época, mas fica o apontamento: grande parte da esquerda intelectual europeia pós-maio de 1968 (Sartre e Beauvoir, por exemplo) apoiavam relações com menores de idade. Etc. Ah, e quem tá na capa de Joia é a Dedé, e não a Paula Lavigne, mas esse foi o gancho que achei.
Pior que acho “Minha mulher” uma musicaça. Joia era um álbum irmão do Qualquer coisa, os dois gravados e lançados juntos, mas se o outro explode em alguns momentos, esse aqui é um disco mais zen: violão e voz em primeiro plano, sem guitarra elétrica nem bateria, e um espírito de contemplação que atravessa tudo. É mais coeso, minimalista, mesmo sem grandes músicas que todo mundo lembra. Muitas faixas curtinhas, repetitivas, com momentos quase cacofônicos — mas bonitas, cheias de silêncio e intenção. Tem Beatles, mas só um cover, “Help”, que funciona bem.
Durante muito tempo considerei essa dobradinha de discos entre os pontos altos da discografia. Hoje, revendo com calma, acho que boa parte dos álbuns dos anos setenta não envelheceu tão bem quanto os da década seguinte. Algumas coisas não envelhecem bem.
Joias: “Minha mulher,” “Lua, lua, lua, lua,” “Na asa do vento”.
#16 Uns (1983) – Agradável do início ao fim, o último disco com a Outra Banda da Terra é pra mim o pior deles, ainda que gigante. Quando acerta, acerta alto: “Eclipse oculto”, música sobre amor e uma brochada, é um dos pontos altos da carreira do Caetano, cheio de gritinhos de astro pop. “Você é linda” tocou até cansar — em novela, em rádio, na cabeça de todo mundo — mas segue perfeita. Vale destacar também a faixa-título e “A Outra Banda da Terra”, com verbos cantados num erre caipira, de um jeito que só o Caetano faria.
Umas: “Eclipse oculto”, “Você é linda”, “A outra banda da terra”.
#15 Caetano (1987) – Caetano foi lançado entre Velô e Estrangeiro e ocupa um lugar bem particular nessa discografia, já com a ajuda do Carlinhos Brown, mas ainda sem a produção feroz do Arto Lindsay. Aqui tem uma das faixas de abertura mais incríveis do Caetano: “José”: “Estou no fundo do poço/Meu grito lixa o céu seco,” ele canta, acompanhado de um baixo sem trastes e explosões de uma orquestra sintetizada. Cada faixa transporta o ouvinte pra um universo diferente, da curiosa “Eu sou neguinha?” à pop “Vamo comê”, com o Luiz Melodia. Talvez seja o disco mais subestimado dele.
Três universos: “José”, “Noite de hotel”, “O ciúme”.
#14 Outras palavras (1981) – Verão, praia e pop. Diferente do antecessor Cinema transcendental, aqui Caetano aparece na capa de frente, usando uma regata rosinha contra a parede laranja de casa. As vibes são bem tropicais: às vezes com uma ginga funk à brasileira (como na faixa-título ou em “Quero um baby seu”), às vezes em declarações de amor doces, quase encantatórias (“Lua e estrela”, “Rapte-me, camaleoa”, as mais lembradas dessa era), ou no modo zen/voz e violão de “Nu com a minha música” — pra mim, a melhor do disco. Esse verso resume bem: “Deixo fluir tranquilo naquilo tudo que não tem fim.” Tudo aqui flui tranquilo mesmo, e curiosamente Outras palavras foi o primeiro disco da carreira do Caetano a vender bem de verdade, garantindo o primeiro disco de ouro. A primeira metade é perfeita e a segunda um pouco abaixo; ainda assim, dá pra ir sem erro, como sempre.
Pra botar na JBL na beira: “Outras palavras”, “Lua e estrela”, “Nu com a minha núsica”, “Rapte-me, camaleoa.”
#13 Velô (1984) – Velô parece que foi produzido em 1984. Tudo infelizmente soa datado, dos teclados new wave aos drumbeats, mas o disco é cheio de obras-primas. “Podres poderes” tece comentários precisos sobre o destino trágico aqui no lado sul do mundo… mas as guitarras distorcidas e as baterias puxam todo o mix pra um lamaceiro meio esquisito. Em “O quereres”, uma das mais lindas e tortas declarações de amor já feitas, Caetano lança uma bruxaria linguística típica dele, substantivando um verbo no infinitivo flexionado pra segunda pessoa (!)… mas mal dá pra ouvir o baixo, as guitarras, a bateria. Em “Língua”, com a Elza Soares, tem outra homenagem linda à nossa língua (“A língua é minha pátria/E eu não tenho pátria, tenho mátria/E quero frátria”)… só que a percussão afetada e os vocais ocupam toda a mixagem, ao contrário do baixo, depois substituído por um synth barato.
Tem isso nesse disco: o baixo nunca consegue ancorar as músicas, de tão comprimido que fica. Ainda assim, Velô é um disco importante, cheio de ideias brilhantes, letras afiadas e melodias que continuam ressoando. A produção pesa, mas não afunda.
Obras-primas incontestáveis: “Podres poderes”, “O homem velho”, “O quereres”, “Língua”.
#12 Abraçaço (2012) – O último disco da trilogia Cê é outro grande highlight da carreira. Aclamado por público e crítica, Abraçaço fez barulho quando saiu. E, nossa, como esse disco tocava no diretório acadêmico. Trouxe novos elementos às composições do Caetano — na crueza dos arranjos, no lirismo que mistura íntimo e político, no choque entre delicadeza e força, onde referências a João Gilberto e Bob Dylan convivem com ícones do MMA e figuras da resistência da ditadura. Abraçaço é urbano, intenso, enigmático, um disco que expande os limites da canção e reinventa o fôlego criativo do Caetano.
Abraços: “A bossa nova é foda”, “Um abraçaço”, “Estou triste”, “O império da lei”, “Um comunista”.
#11 Circuladô (1991) – Discaço. Apesar dessa fase estranha do Caetano, tentando traduzir o Brasil do neoliberalismo num momento em que o projeto tropicalista dava sinais de fracasso, é um disco com qualidades meio óbvias, do tratado dos novos tempos de “Fora da ordem” à dissonância ácida de “O cu do mundo”. Nada que impeça momentos doces e calorosos, como “Itapuã”, “Boas vindas”, “Lindeza”. O disco ao vivo dessa era é um dos melhores, senão o melhor, baita mesmo.
Circuladôs: “Fora da ordem”, “Itapuã”, “O cu do mundo”.
#10 Caetano Veloso (1971) – Disco do exílio junto com Transa, Caetano Veloso fala sobre a prisão pelos militares, a saudade de casa e a apatia frente à impossibilidade de voltar. Cheio de clássicos do Caetano, só não ocupa um lugar mais alto na lista porque é quase todo em inglês. Mas é uma boa oportunidade de ver o Caetano de barba.
As clássicas: “A little more blue”, “London London”, “Maria Bethânia”.
#9 Estrangeiro (1989) – Aos 47 anos, Caetano estava imparável, acossado pela intensidade do momento histórico e pronto para botar tudo na ponta da caneta. “O Estrangeiro”, a faixa-título, é uma dessas obras-primas que só ele sabia fazer, condensando o espírito da época na voz de um poeta inquieto ao perceber que os sonhos da juventude não se concretizaram. Apaixonado pelo Brasil, mas indignado com as injustiças, Caetano se reconhece como um estrangeiro no meio da geleia geral — sempre uma voz única, independente, alheia às correntes dominantes. Lançado em 1989, Estrangeiro soa como um disco dos anos noventa antes dos anos noventa: produção internacional, guitarras distorcidas, synths limpos, baterias com reverb cortado (vide “Jasper”) — tudo isso misturado ao berimbau e ao pandeiro do Carlinhos Brown numa síntese pujante entre tradicional e moderno, orgânico e processado. Tropicalismo puro, mas sob nova forma.
Os marcos: “O estrangeiro”, “Jasper”, “Genipapo absoluto”.
#8 Muito (dentro da estrela azulada) (1978) – Que glória. Minha maior redescoberta: nessa onda de ouvir e reouvir os discos, Muito foi o que mais cresceu em mim. Abre com “Terra”, um clássico absoluto do lirismo do homem, uma música que dá um zoom-out do próprio objeto e o observa em plena luz. Tem “Muito romântico”, minha música preferida do Caetano, com os coros masculinos e femininos produzidos à perfeição (a versão original é do Roberto Carlos e é perfeita também, cheia de sopros grandiosos). E (mais) um cover incrível de Jorge Ben. Muito é um disco que soa tranquilo, não tem grandes aventuras no quesito som, mas é coeso e perfeito.
Valem muito: “Terra”, “Muito romântico” e “Sampa”.
#7 Cores, nomes (1982) – Da primeira vez que ouvi esse, ainda adolescente, lembro que fiquei decepcionado quando dei play em “Ele me deu um beijo na boca” e descobri que era “só” uma música pro Gil — uma celebração de uma amizade entre dois homens que se amam sem limites, vêm do mesmo lugar e falam a mesma língua. Hoje acho isso um dos detalhes mais bonitos do disco. Descobri que na contracapa de Cores, Nomes o Caetano aparece se aproximando pra beijar outro homem. Fui atrás pra saber quem era, e era o pai dele. A mente desse homem! Chamavam ele e o Gil de bicha, e eles não só não estavam nem aí, como falavam disso nas entrevistas e enfiavam o assunto nas músicas. No mais, Cores, Nomes é um cardápio de hits: tem “Sina” com Djavan, o cover delicado de “Sonhos”, “Queixa”, “Trem das Cores”, “Meu Bem, Meu Mal”... Não à toa foi o segundo disco de ouro do Caetano.
Pra beijar na boca: “Queixa”, “Sina”, “Sonhos”.
#6 Transa (1972) – Disco do exílio que parece gravado na pele, Transa é Caetano cantando com saudade, raiva, doçura e liberdade, tudo ao mesmo tempo. A mistura de português e inglês flui como se os idiomas fossem um só. As faixas são puro feeling: “You don’t know me” sangra e repete, “Triste Bahia” cresce até virar um transe, “Mora na Filosofia” é samba passado na fossa do exílio. Tudo com um som quente, cru, urgente. É provavelmente o disco mais visceral da carreira do Caetano — e um dos mais amados, com razão.
Transas: “You don’t know me”, “Nine out of ten”, “It’s a long way”.
#5 Cinema transcendental (1979) – Um grande clássico. As sete primeiras faixas são ouro puro: composições líricas, precisas, que ele canta até hoje nos shows — “Lua de São Jorge”, “Menino do rio”, “Oração ao tempo”, “Beleza pura”... é hit atrás de hit. Um disco de domínio absoluto da canção popular, feito com leveza, mas sem abrir mão da complexidade afetiva. “Louco por você”, faixa central de sete minutos, talvez pareça longa demais no conjunto, mas tem sua própria lógica interna, como uma pausa onírica no meio do percurso. Logo depois vem “Cajuína”, acompanhada pelo acordeão do Dominguinhos: simples, filosófica, inesquecível. Um disco de luz.
Transcendentais: “Oração ao tempo”, “Beleza pura”, “Menino do rio”, “Cajuína”.
#4 Caetano Veloso (1968) – Viva a Maria, viva a Bahia. Com a ajuda dos Mutantes, Gil e Rogério Duprat, Caetano inaugurou a Tropicália com uma das maiores pequenas obras-primas da música brasileira. Inspirado pela contracultura, ele ressurge em 1968 com uma roupagem psicodélica, misturando baladas e cantigas de ninar com guitarras elétricas distorcidas — um contraste explosivo que lança as bases de toda a produção tropicalista da década seguinte.
As obras-primas: “Tropicália”, “Alegria alegria”, “Soy loco por ti, América”.
#3 Cê (2006) – Reapresentação pra um novo público nos anos 2000, agora com uma banda de indie rock. Vou logo dizer — me incluo nesse novo público. Eu era um adolescente fã de indie e Cê me pegou em cheio. É, com certeza, o álbum do Caetano que mais escutei na vida: uma mistura de disco de término com ópera indie rock à la Strokes. Começa com um soco: “Você nem vai me reconhecer / Quando eu passar por você / De cara alegre e cruel / Feliz e mau como um pau duro.” Bom saber que depois deu tudo certo e ele voltou com a Paula Lavigne, mas nossa, que dor ele (e a gente) sentiu. Tem músicas de término raivosas (“Outro”, “Rocks”), odes tortas às mulheres vistas pela lente masculina (“Deusa Urbana”, “Musa Híbrida”, “Homem”), lamentos escancarados (“Minhas Lágrimas”, “Não Me Arrependo”) — e até paixonites do Caetano por machos, como em “Odeio”.
Muitos highlights, mas vou escolher três: “Outro”, “Odeio”, “Homem”.
#2 Caetano Veloso (1969) - Gravado em prisão domiciliar, com arranjos completados à distância pelo Rogério Duprat, o álbum branco tinha tudo pra dar errado — e deu muito certo. No perrengue, Caetano soa afiado, criativo, livre. É aqui que ele começa a desenhar o estilo que vai marcar toda a produção na década seguinte: letras tortas e geniais, gêneros misturados sem cerimônia, melancolia e experimentação lado a lado. “Irene” abre simples e brilhante — um mantra regional-psicodélico feito pra irmã. Depois vêm as faixas em inglês (“The empty boat”, “Lost in the paradise”), a adaptação lindamente estranha de “Marinheiro só”, o frevo ácido “Atrás do trio elétrico” e a beleza existencial de “Os argonautas”. No lado B tem a versão soturna de “Carolina” (que o Chico não curtiu), o tango dramático “Cambalache”, a lisergia pop de “Não identificado”, e fecha com “Acrilírico” e “Alfômega”, dois experimentos que ainda hoje soam modernos. Um disco triste mas também inventivo, cheio de coragem, e que envelheceu melhor que a maioria.
As melhores: “Irene”, “Lost in the paradise”, “Não identificado”.
#1 Bicho (1977) – Solar, doce, malemolente. Bicho foi massacrado na época por não ser engajado o suficiente — e justamente por isso virou um disco político sem querer, só por escolher o prazer, o corpo, a dança, o afeto. Caetano tinha acabado de voltar da Nigéria, onde viu de perto o poder da música negra moderna, e isso atravessa o disco inteiro, seja no groove delicioso de “Odara”, no suingue de “Two Naira Fifty Kobo”, no reggae místico de “Um índio” ou no soul brasileiro de “Tigresa”, na beleza pura de “O leãozinho”. O disco fecha com “Alguém cantando”, cantada pela irmã dele, uma música simples e bonita como uma despedida num show.
Caetano fechou os shows da turnê de despedida com a Bethânia com “Odara”. A música ficava tocando quando os irmãos Veloso se despediam. A banda continuava tocando e o público cantando, como se Caetano quisesse que a mensagem definitiva dele fosse essa. Canto e danço que dará.
Pro corpo ficar odara: “Odara”, “Olha o menino”, “Um índio”, “Alguém cantando”.